Um Dissidente Político (Charles Spurgeon, 1873)


Prefácio

Neste artigo feito para a sua revista mensal, a “The Sword and the Trowel” (A Espada e a Espátula) em 1873, Spurgeon rebate as críticas de clérigos anglicanos. A acusação é de que Spurgeon estava mexendo com Política, que era coisa que ele não entendia. E de que ele estava agindo como um “dissidente político”, por criticar a união entre a Igreja Anglicana e o Estado Inglês.

A melhor análise contextual para que você entenda este artigo do Spurgeon foi escrito por Marcos Paulo A. Morais em seu artigo: C. H. Spurgeon e a Política de seu tempo (EXEMPLO PARA UMA PEQUENA ANÁLISE DE NOSSO CONTEXTO POLÍTICO).

Sugerimos que antes de ler o artigo do Spurgeon abaixo, leia primeiro o artigo do Marcos Paulo para você ver que ainda hoje a igreja evangélica brasileira é atraída pelo poder da esfera do Estado e isso não é saudável para a própria soberania de esfera da Igreja de Cristo Jesus no Brasil.

por Charles H. Spurgeon*

Um Dissidente Político (A Political Dissenter)

Durante o último mês, foi nosso destino ser abusado tanto em público quanto por carta, como poucos homens foram, por termos expressado em poucas frases nossa crença de que César deveria cuidar melhor de suas próprias coisas e deixar as coisas de Deus em paz.

Muitas das cartas que recebemos são de um caráter que desonrariam a própria causa de Belzebu. Certamente, a aliança entre Igreja e Estado nunca terminará por falta de valentões para defendê-la.

Algumas comunicações foram corteses e até racionais, mas de longe em sua grande proporção foi simplesmente um amálgama de apelidos pejorativos e de linguagem bombástica e tola. Claro que não gostamos dessas coisas e, no entanto, longe de ficarmos deprimidos, elas até nos causaram um pouco de alegria extra.

Nossa experiência quanto ao efeito desses ataques furiosos tem sido um pouco semelhante à de Lutero, de quem Michelet tem a seguinte nota:

“Estando um dia de muito bom humor à mesa, disse: ‘Não se escandalize por me ver tão feliz. Acabei de ler uma carta violentamente abusando de mim. Nossos negócios só podem estar indo muito bem, já que o diabo está atacando desta forma.’ (Lutero)”

Michelet

Das observações que se seguem, inocentamos enfaticamente certos clérigos honrados que nós amamos, mesmo sendo eles homens fracos que não exigiremos o silêncio como preço da amizade, outros desses, nós conhecemos e honramos, pois são homens de cunho nobre, antagonistas justos quando precisam se opor, mas irmãos em Cristo de verdade. Se Deus estivesse mais presente, as exasperações que agora amargam a discussão dariam lugar às tolerâncias mútuas ou, na pior das hipóteses, aos argumentos corteses.

Entre as acusações lançadas contra nós está uma que nossos acusadores evidentemente consideram a mais grave. Eles nos chamam de “dissidentes políticos”. Parecem ter se entregado a um termo pejorativo terrível, cujo o próprio som já nos aniquilaria. Contudo, é fato curioso que nem o som e nem o sentido dessas palavras “terríveis” nos impressionaram com o medo ou nos levaram ao arrependimento.

A política, se for honesta, não é de forma alguma pecaminosa, ou o cargo de legislador seria fatal para a alma, e os dissidentes, se discordarem do erro, são indivíduos louváveis: como, portanto, nem o “político” nem o “dissidente” é necessariamente mau, a mistura de duas coisas boas ou indiferentes dificilmente pode ser intoleravelmente má.

Poder-se-ia imaginar pela boca que nossos oponentes julgam que “um Dissidente Político” pode ser um tipo peculiarmente feroz de tigre ou víbora especialmente venenosa ou talvez um griffin1, um dragão ou “um monstro terrível, de forma horrível”; mas até onde podemos entender o significado das palavras, ele é apenas um Dissidente que exige seus direitos civis naturais, um Inconformista que anseia por aquela igualdade religiosa perante a lei que a justiça imparcial deve conceder a cada cidadão.

Um dissidente que é piedoso e humilde, e conhece seu dever para com seus superiores, e caminha de maneira humilde e reverente para com eles, nunca é político. Ele é considerado piedoso e admirado nas reuniões da Associação de Defesa da Igreja, embora em outros lugares, visto que com toda a sua piedade ele ainda é um dissidente, ele é devidamente esnobado pelos mesmos párocos que tanto o admiram.

Se um dissidente deseja ter um bom relatório daqueles dentro do campo estabelecido, ele deve bajular todos os reitores, vigários e párocos auxiliares – ele deve “glorificar a Deus por levantar tal baluarte para nossas liberdades protestantes como a Igreja da Inglaterra, conforme a lei estabelece.” ou pelo menos; ele deve ficar em silêncio satisfeito sob seus erros e nunca abrir a boca para reclamar seus direitos.

Deixe de ser homem e você será “um dissidente piedoso”. Agora, fale e mostre o mínimo de independência de espírito e você virará um odioso dissidente político. Seja grato pela tolerância que você desfruta para continuar a comer seu humilde pedacinho de torta num cantinho e o reitor lhe permitirá encontrá-lo nas reuniões da Sociedade Bíblica. Agora, ouse chamar sua própria alma de sua e você será colocado no livro negro daqueles terríveis emissários do Sr. Miall.

A piedade na mente clerical é geralmente sinônimo de subserviência às suas reverências, mas esperamos que, sem ser totalmente ímpios, possamos questionar a correção de seu julgamento. Alguns dos homens mais devotos, espirituais e semelhantes a Cristo que já conhecemos, estavam tão plenamente convencidos dos males do atual Estamento Clerical, e tão zelosos pela separação entre Igreja e Estado, como sempre podemos estar. Eles eram santos e, no entanto, dissidentes políticos: viviam perto de Deus e desfrutavam da comunhão diária com o céu e, no entanto, como o apóstolo Paulo, valorizavam seus direitos civis e protestavam quando se viam prejudicados em seus direitos.

À medida que a lista dos nomes e títulos desses ilustres falecidos surgem diante de nós, homens de quem o mundo não era digno e que eram os dissidentes políticos de sua época, nós nos sentimos tranquilos e de modo algum estamos dispostos a mudar nossos companheiros. Os homens que julgaram a piedade de nossos predecessores, como agora julgam a nossa, só podem estar pouco familiarizados com o significado de piedade, se a separarem da coragem e da independência.

Nunca pedimos endosso de nossa piedade aos senhores, e se o déssemos, passaríamos a suspeitar de nossa própria posição diante de Deus. Longe de nós a bajulação covarde e do covarde que faz do pobre ministro dissidente o subordinado condescendente do reitor aristocrático! Igualmente longe de nós está o silêncio obsequioso que ganha o costume do comerciante inconformista que vende sua consciência, bem como suas mercadorias. Se estes são piedosos, podemos estar livres de tal piedade. Para nós, deixe acontecer de falar a verdade e não dobrar o joelho a ninguém, se isso é o que significa ser político.

É fácil atirar pedras nos outros, mas as casas de vidro devem sussurrar cautela. Se é um mal tão terrível para um dissidente ser político, qual deve ser a condição de um clérigo político? No entanto, todo clérigo é apenas isso, pois é funcionário de uma igreja política, ou melhor, é comissionado pelas autoridades políticas para atender à religião nacional; ele é, portanto, um clérigo político ex officio. Além disso, se for uma grave lesão à piedade de um ministro dissidente comparecer a uma reunião da Sociedade de Libertação uma vez por ano, não há perda de graça em participar de uma Associação de Defesa da Igreja?

O Sr. Spurgeon fala sobre vinte frases em um sermão sobre César e sua esfera apropriada, e isso é tão prejudicial à prosperidade de sua alma que ele recebe cartas aos montes de clérigos excessivamente graciosos que estão em agonia por causa de sua decadência espiritual. Isso é muito gentil e maternal, mas o mesmo cuidado é tomado com aquele excelente homem, o Sr. Ryle, que não apenas fez muitos discursos políticos, mas também escreveu panfletos sobre o assunto da Igreja e do Estado?

Confiamos que nosso digno irmão foi nutrido com muita vigilância, pois ele tem a doença política muito pesadamente sobre ele, podemos julgar por alguns de seus folhetos. Ele é um exemplo terrível de um clérigo político. Acreditamos que o partido da Alta Igreja o considera um Dissidente, e nos regozijamos em acreditar que eles estão bem perto do alvo, julgando o homem bom doutrinariamente; e se eles estão certos em seus pontos de vista, o Sr. Ryle é um dissidente político, só que ele está fora de seu devido lugar. Alguns de seus amigos vão lembrá-lo de seu perigo?

E eles ao mesmo tempo notarão que para cada palavra sobre política dita por nós, clérigos piedosos podem ser encontrados que proferiram dez ou cem. Neles parece louvável, e em nós censurável: como é isso?

Para o clérigo espiritual, diríamos: — Pegue os dezoito volumes do Púlpito do Tabernáculo Metropolitano, e veja se você pode encontrar dezoito páginas de matéria que até mesmo abordam a política; mais ainda, veja se há uma sentença solitária relativa à política, que, na mente do pregador, não parece surgir de seu texto, ou fluir do curso natural de seu assunto.

A abstinência do pregador de tais temas seria eminentemente louvável, se não fosse possivelmente censurável; pois ele pode ter negligenciado um dever desagradável.

A verdade é que muitos de nós são relutantes em tocar na política, e nunca o fariam se não fôssemos levados a isso. Nosso tema de vida é o evangelho, e lidar com os pecados do Estado, para nós é uma “obra estranha”, na qual só entramos sob as solenes restrições do dever.

Ver o papado se tornar a religião nacional despertou os mais gentis entre nós. Uma igreja evangélica, imposta a nós pelo Estado, era uma queixa e um erro, mas forçar descaradamente um estabelecimento ritualístico sobre nós como a religião estatal é uma tirania que nenhum inglês deveria suportar.

Um padre anglicano deve balançar seu incensário em nossos rostos em nome da nação? Os ídolos e divindades do Ritualismo deveriam ser apresentados diante de nós, com esta exclamação: “Estes são os teus deuses, ó Inglaterra!”

O caso é assim e protestamos porque somos protestantes! E não vamos suportá-lo quietinho, porque adoramos o Deus vivo! Só continuaremos em nosso dever espiritual com bastante calma se aqueles que estão no poder estatal derem direitos iguais a todas as religiões. Teremos o prazer de não ter mais motivos para apelar à justiça pública e não haverá mais razões para divergências com nossos irmãos cristãos. Se somos políticos, dê-nos nossos direitos e não seremos mais assim. Já que nossa espiritualidade é preciosa para nossos antagonistas, que eles nos livrem dessa tentação que nos coloca em perigo!

Para um ministro cristão ser um partidário ativo de Whigs ou Tories, mesmo quando ocupado em colportagem e eloquente em reuniões públicas para facções rivais, seria de má reputação. Para o cristão, esquecer sua cidadania celestial e ocupar-se com os objetos dos caçadores de lugares seria degradante para sua alta vocação: mas há pontos de contato inevitável entre as esferas superior e inferior, pontos em que a política persiste em entrar em colisão com nossa fé, e lá seremos traidores tanto do céu quanto da terra se consultarmos nosso conforto esgueirando-nos para a retaguarda.

Até que a religião na Inglaterra esteja inteiramente livre da influência e controle do Estado, até que o papado anglicano deixe de ser chamado de religião oficial, até que todos os homens de todas as religiões sejam iguais perante os olhos da lei, quanto aos seus direitos religiosos, não podemos e não ousaremos deixar de ser políticos. Porque tememos a Deus e desejamos sua glória, deveremos ser políticos e agora será parte de nossa piedade ser assim.

Quando mais perto de Deus em oração, oramos para que sua igreja não oprima nem seja oprimida. Ao andar na mais santa comunhão com Jesus, ansiamos que somente Ele seja o cabeça da Igreja, e que ela não mais se contamine com os reis da terra.

Não deixemos que nossos oponentes nos enganem! Nós ousamos levar nossa causa diante do trono de Deus e nós assim o fazemos habitualmente. Nossos protestos diante dos homens são repetidos em nossas orações a Deus. Nossas emoções religiosas mais profundas são despertadas pela luta que nos é imposta.

Não diremos que os inconformados que não são abusados ​​como dissidentes políticos não são piedosos, mas diremos que, se nos esquivarmos do trabalho que nos torna políticos, deveremos nos considerar traidores do Senhor nosso Deus.

A maldição de Meroz cairia sobre nós se não viéssemos em socorro do Senhor neste dia de batalha. A história da nação, e o destino de milhões, pode depender da fidelidade dos não-conformistas neste momento, e nossa persuasão é que chegará o dia em que será a fama e não a desonra que terá sido contada – UM DISCURSO POLÍTICO.

1. griffin: uma criatura mítica com cabeça e asas de águia e corpo de leão, tipicamente representada com orelhas pontudas e com as pernas da águia tomando o lugar das patas dianteiras.

* Original text by SPURGEON, Charles H. A Political Dissenter: From the March 1873 Sword and Trowel; Traduzido por Wesley Porfírio. link https://www.biblebb.com/files/spurgeon/pd1873.htm acessado em 09 de fevereiro de 2022.

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